sábado, 15 de março de 2008

Um modelo real

Fui visitar uma amiga, por conta do aniversário de sua filhinha, e lá tive a oportunidade de conversar longamente com seu pai. Ele me contou que exerce sua profissão com prazer e dedicação, mas também com equilíbrio. Ele tem consciência de que a vida é finita e que deve ser bem aproveitada. Assim, aproveita todas as oportunidades que tem para fazer as viagens mais interessantes possíveis, sempre na companhia de sua esposa, de quem fala com sincero orgulho. Nos últimos 20 anos, só não puderam viajar juntos em uma ocasião. Eles construíram uma bela família e uma casa onde adoram estar.

Tudo em sua vida tem valido a pena, me disse ele. É, portanto, uma prova viva de que aquilo em que acredito, existe.

sábado, 8 de março de 2008

Ser justo ou injusto?

Glauco diz a Sócrates:

"... em primeiro lugar, direi o que se afirma ser a justiça, e qual a sua origem; em segundo, que todos os que a praticam o fazem contra a vontade, como coisa necessária, mas não como boa; em terceiro, que é natural que procedam assim, porquanto, afinal de contas, a vida do injusto é muito melhor que a do justo, no dizer deles."

"Dizem que a injustiça é, por natureza, um bem, e sofrê-la, um mal, mas que ser vítima de injustiça é um mal maior do que o bem que há em cometê-la. De maneira que, quando as pessoas praticam ou sofrem injustiças umas das outras, e provam de ambas, lhes parece vantajoso, quando não podem evitar uma coisa ou alcançar a outra, chegar a um acordo mútuo, para não cometerem injustiças nem serem vítimas delas. Daí se originou o estabelecimento de leis e convenções entre elas e a designação de legal e justo para as prescrições da lei. Tal seria a gênese e essência da justiça, que se situa a meio caminho entre o maior bem -- não pagar a pena das injustiças -- e o maior mal -- ser incapaz de se vingar de uma injustiça. Estando a justiça colocada entre esses dois extremos, deve, não preitear-se como um bem, mas honrar-se devido à impossibilidade de praticar a injustiça. Uma vez que o que pudesse cometê-la e fosse verdadeiramente um homem nunca aceitaria a convenção de não praticar nem sofrer injustiças, pois seria loucura. Aqui tens, Sócrates, qual é a natureza da justiça, e qual a sua origem, segundo é voz corrente."

Conta, então, sobre um anel mítico capaz de tornar invisível seu usuário.

"Se, portanto, houvesse dois anéis como esse, e o homem justo pusesse um, e o injusto outro, não haveria ninguém, ao que parece, tão inabalável que permanecesse no caminho da justiça, e que fosse capaz de se abster dos bens alheios e de não lhes tocar, sendo-lhe dado tirar à vontade o que quisesse do mercado, entrar nas casas e unir-se a quem lhe apetecesse, matar ou libertar das algemas a quem lhe aprouvesse, e fazer tudo o mais entre os homens, como se fosse igual aos deuses. Comportando-se desta maneira, os seus atos em nada difeririam dos do outro, mas ambos levariam o mesmo caminho. E disto se pode afirmar que é uma grande prova, de que ninguém é justo por sua vontade, mas forçado, por entender que a justiça não é um bem para si, individualmente, uma vez que, quando cada um julga que lhe é possível cometer injustiças, comete-as. Efetivamente, todos os homens acreditam que lhes é muito mais vantajosa, individualmente, a injustiça que a justiça. E têm razão, como dirá o defensor dessa argumentação. Uma vez que, se alguém que usurpasse tal poder não quisesse jamais cometer injustiças, nem apropriar-se dos bens alheios, pareceria aos que disso soubessem muito desgraçado e insensato. Contudo, haviam de elogiá-lo em presença uns dos outros, enganando-se reciprocamente, com receio de serem vítimas de alguma injustiça. Assim são, pois, estes fatos.

Quanto à escolha, em si, entre as vidas de que estamos a falar, se considerarmos separadamente o homem mais justo e o mais injusto, seremos capazes de julgar corretamente. Caso contrário, não. Qual é então essa separação? É a seguinte: nada tiremos, nem ao injusto em injustiça, nem ao justo em justiça, mas suponhamos que cada um deles é perfeito em sua maneira de viver. Em primeiro lugar, que o injusto faça como os artistas qualificados -- como um piloto de primeira ordem, ou um médico, repara no que é impossível e no que é possível fazer com a sua arte, e mete ombros a esta tarefa, mas abandona aquela. E ainda, se vacilar nalgum ponto, é capaz de o corrigir. Assim também o homem injusto deve meter ombros aos seus injustos empreendimentos com correção, passando despercebido, se quer ser perfeitamente injusto. Em pouca conta deverá ter-se quem for apanhado. Pois o supra-sumo da injustiça é parecer justo sem o ser. Demos, portanto, ao homem perfeitamente injusto a mais completa injustiça; não lhe tiremos nada, mas deixemos que, ao cometer as maiores injustiças, granjeie para si mesmo a mais excelsa fama de justo, e, se acaso vacilar nalguma coisa, seja capaz de a reparar, por ser suficientemente hábil a falar, para persuadir; e, se for denunciado algum de seus crimes, que exerça a violência, nos casos em que ela for necessária, por meio da sua coragem e força, ou pelos amigos e riquezas que tenha granjeado. Depois de imaginarmos uma pessoa destas, coloquemos agora mentalmente junto dele o homem justo, simples e generoso, que, segundo as palavras de Ésquilo, não quer parecer bom, mas sê-lo. Apaguemos dele, então, essa aparência. Porquanto, se ele parecer justo, terá honrarias e presentes, por aparentar ter essas qualidades. E assim não será evidente se é por causa da justiça, se pelas dádivas e honrarias, que ele é desse modo. Deve pois despojar-se de tudo, exceto a justiça, e deve imaginar-se como situado ao invés do anterior. Que, sem cometer falta alguma, tenha a reputação de máxima injustiça, a fim de ser provado como a pedra de toque em relação à justiça, pela sua recusa a vergar-se ao peso da má fama e suas conseqüências. Que caminhe inalterável até a morte, parecendo injusto toda a sua vida, mas sendo justo, a fim de que, depois de terem atingido ambos o extremo limite, um da justiça, outro da injustiça, se julgue qual deles foi mais feliz."

"Dirão eles [aqueles que honram a injustiça em vez da justiça] o seguinte: que o justo que delineei desta maneira será chicoteado, torturado, feito prisioneiro, queimar-lhe-ão os olhos e, finalmente, depois de ter sofrido toda espécie de males, será empalado e compreenderá que se deve querer, não ser justo, mas parecê-lo. O dito de Ésquilo aplicar-se-ia muito melhor ao injusto. Efetivamente, dirão que o injusto, preocupando-se com alcançar uma coisa real, e não vivendo para a aparência, não quer parecer injusto, mas sê-lo ..."

"Em primeiro lugar manda na cidade, por parecer justo; em seguida, pode desposar uma mulher da família que quiser dar as filhas em casamento a quem lhe aprouver, fazer alianças, formar empresas com quem desejar, e em tudo isso ganha e lucra por não se incomodar com a injustiça. De acordo com isto, quando entra em conflito público ou privado, é ele que prevalece e leva vantagem aos adversários; essa vantagem fá-lo enriquecer e fazer bem aos amigos e mal aos inimigos, e efetuar sacrifícios aos deuses e fazer-lhes oferendas numerosas, magníficas mesmo, e prestar honras aos deuses e àqueles dentre os homens, que lhe aprouver, muito melhor do que o justo, de tal maneira que é natural, segundo todas as probabilidades, que ele seja mais favorecido pelos deuses do que o homem justo. É assim que se afirma, amigo Sócrates, que junto aos deuses e dos homens o homem injusto granjeia melhor sorte do que o justo."

Sócrates começa a investigar a questão e, depois de 250 páginas de diálogos, conclui:

"Se acreditares em mim, crendo que a alma é imortal e capaz de suportar todos os males e todos os bens, seguiremos sempre o caminho para o alto, e praticaremos por todas as formas a justiça com sabedoria, a fim de sermos caros a nós mesmos e aos deuses, enquanto permanecermos aqui; e, depois de termos ganho os prêmios da justiça, como os vencedores dos jogos que andam em volta a recolher os prêmios da multidão, tanto aqui como na viagem de mil anos que descrevemos, seremos então felizes."

(A República, Platão, Editora Martin Claret, 2007)