sábado, 8 de março de 2008

Ser justo ou injusto?

Glauco diz a Sócrates:

"... em primeiro lugar, direi o que se afirma ser a justiça, e qual a sua origem; em segundo, que todos os que a praticam o fazem contra a vontade, como coisa necessária, mas não como boa; em terceiro, que é natural que procedam assim, porquanto, afinal de contas, a vida do injusto é muito melhor que a do justo, no dizer deles."

"Dizem que a injustiça é, por natureza, um bem, e sofrê-la, um mal, mas que ser vítima de injustiça é um mal maior do que o bem que há em cometê-la. De maneira que, quando as pessoas praticam ou sofrem injustiças umas das outras, e provam de ambas, lhes parece vantajoso, quando não podem evitar uma coisa ou alcançar a outra, chegar a um acordo mútuo, para não cometerem injustiças nem serem vítimas delas. Daí se originou o estabelecimento de leis e convenções entre elas e a designação de legal e justo para as prescrições da lei. Tal seria a gênese e essência da justiça, que se situa a meio caminho entre o maior bem -- não pagar a pena das injustiças -- e o maior mal -- ser incapaz de se vingar de uma injustiça. Estando a justiça colocada entre esses dois extremos, deve, não preitear-se como um bem, mas honrar-se devido à impossibilidade de praticar a injustiça. Uma vez que o que pudesse cometê-la e fosse verdadeiramente um homem nunca aceitaria a convenção de não praticar nem sofrer injustiças, pois seria loucura. Aqui tens, Sócrates, qual é a natureza da justiça, e qual a sua origem, segundo é voz corrente."

Conta, então, sobre um anel mítico capaz de tornar invisível seu usuário.

"Se, portanto, houvesse dois anéis como esse, e o homem justo pusesse um, e o injusto outro, não haveria ninguém, ao que parece, tão inabalável que permanecesse no caminho da justiça, e que fosse capaz de se abster dos bens alheios e de não lhes tocar, sendo-lhe dado tirar à vontade o que quisesse do mercado, entrar nas casas e unir-se a quem lhe apetecesse, matar ou libertar das algemas a quem lhe aprouvesse, e fazer tudo o mais entre os homens, como se fosse igual aos deuses. Comportando-se desta maneira, os seus atos em nada difeririam dos do outro, mas ambos levariam o mesmo caminho. E disto se pode afirmar que é uma grande prova, de que ninguém é justo por sua vontade, mas forçado, por entender que a justiça não é um bem para si, individualmente, uma vez que, quando cada um julga que lhe é possível cometer injustiças, comete-as. Efetivamente, todos os homens acreditam que lhes é muito mais vantajosa, individualmente, a injustiça que a justiça. E têm razão, como dirá o defensor dessa argumentação. Uma vez que, se alguém que usurpasse tal poder não quisesse jamais cometer injustiças, nem apropriar-se dos bens alheios, pareceria aos que disso soubessem muito desgraçado e insensato. Contudo, haviam de elogiá-lo em presença uns dos outros, enganando-se reciprocamente, com receio de serem vítimas de alguma injustiça. Assim são, pois, estes fatos.

Quanto à escolha, em si, entre as vidas de que estamos a falar, se considerarmos separadamente o homem mais justo e o mais injusto, seremos capazes de julgar corretamente. Caso contrário, não. Qual é então essa separação? É a seguinte: nada tiremos, nem ao injusto em injustiça, nem ao justo em justiça, mas suponhamos que cada um deles é perfeito em sua maneira de viver. Em primeiro lugar, que o injusto faça como os artistas qualificados -- como um piloto de primeira ordem, ou um médico, repara no que é impossível e no que é possível fazer com a sua arte, e mete ombros a esta tarefa, mas abandona aquela. E ainda, se vacilar nalgum ponto, é capaz de o corrigir. Assim também o homem injusto deve meter ombros aos seus injustos empreendimentos com correção, passando despercebido, se quer ser perfeitamente injusto. Em pouca conta deverá ter-se quem for apanhado. Pois o supra-sumo da injustiça é parecer justo sem o ser. Demos, portanto, ao homem perfeitamente injusto a mais completa injustiça; não lhe tiremos nada, mas deixemos que, ao cometer as maiores injustiças, granjeie para si mesmo a mais excelsa fama de justo, e, se acaso vacilar nalguma coisa, seja capaz de a reparar, por ser suficientemente hábil a falar, para persuadir; e, se for denunciado algum de seus crimes, que exerça a violência, nos casos em que ela for necessária, por meio da sua coragem e força, ou pelos amigos e riquezas que tenha granjeado. Depois de imaginarmos uma pessoa destas, coloquemos agora mentalmente junto dele o homem justo, simples e generoso, que, segundo as palavras de Ésquilo, não quer parecer bom, mas sê-lo. Apaguemos dele, então, essa aparência. Porquanto, se ele parecer justo, terá honrarias e presentes, por aparentar ter essas qualidades. E assim não será evidente se é por causa da justiça, se pelas dádivas e honrarias, que ele é desse modo. Deve pois despojar-se de tudo, exceto a justiça, e deve imaginar-se como situado ao invés do anterior. Que, sem cometer falta alguma, tenha a reputação de máxima injustiça, a fim de ser provado como a pedra de toque em relação à justiça, pela sua recusa a vergar-se ao peso da má fama e suas conseqüências. Que caminhe inalterável até a morte, parecendo injusto toda a sua vida, mas sendo justo, a fim de que, depois de terem atingido ambos o extremo limite, um da justiça, outro da injustiça, se julgue qual deles foi mais feliz."

"Dirão eles [aqueles que honram a injustiça em vez da justiça] o seguinte: que o justo que delineei desta maneira será chicoteado, torturado, feito prisioneiro, queimar-lhe-ão os olhos e, finalmente, depois de ter sofrido toda espécie de males, será empalado e compreenderá que se deve querer, não ser justo, mas parecê-lo. O dito de Ésquilo aplicar-se-ia muito melhor ao injusto. Efetivamente, dirão que o injusto, preocupando-se com alcançar uma coisa real, e não vivendo para a aparência, não quer parecer injusto, mas sê-lo ..."

"Em primeiro lugar manda na cidade, por parecer justo; em seguida, pode desposar uma mulher da família que quiser dar as filhas em casamento a quem lhe aprouver, fazer alianças, formar empresas com quem desejar, e em tudo isso ganha e lucra por não se incomodar com a injustiça. De acordo com isto, quando entra em conflito público ou privado, é ele que prevalece e leva vantagem aos adversários; essa vantagem fá-lo enriquecer e fazer bem aos amigos e mal aos inimigos, e efetuar sacrifícios aos deuses e fazer-lhes oferendas numerosas, magníficas mesmo, e prestar honras aos deuses e àqueles dentre os homens, que lhe aprouver, muito melhor do que o justo, de tal maneira que é natural, segundo todas as probabilidades, que ele seja mais favorecido pelos deuses do que o homem justo. É assim que se afirma, amigo Sócrates, que junto aos deuses e dos homens o homem injusto granjeia melhor sorte do que o justo."

Sócrates começa a investigar a questão e, depois de 250 páginas de diálogos, conclui:

"Se acreditares em mim, crendo que a alma é imortal e capaz de suportar todos os males e todos os bens, seguiremos sempre o caminho para o alto, e praticaremos por todas as formas a justiça com sabedoria, a fim de sermos caros a nós mesmos e aos deuses, enquanto permanecermos aqui; e, depois de termos ganho os prêmios da justiça, como os vencedores dos jogos que andam em volta a recolher os prêmios da multidão, tanto aqui como na viagem de mil anos que descrevemos, seremos então felizes."

(A República, Platão, Editora Martin Claret, 2007)

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